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AMARELO

DENDÊ

Ana Thais Costa

No centro do afeto - uma carta para a exposição:

 

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De onde vem o afeto? Onde ele se centraliza? Essa pergunta vem me rondando de várias maneiras faz algum tempo, e só recentemente percebi que eu circulo com essa pergunta no bolso faz anos. Se eu pensar olhando para trás, me verei nascendo, meia noite e dez minutos de um domingo de verão em pleno Fevereiro, na cidade de Salvador da Bahia. Fevereiro que é repleto de amarelos solares, Salvador, que ao cair do sol, em seus tons de amarelo e laranja inunda tudo com seu cheiro de dendê em ebulição. Acho significativo esse começo, porque poderia ter eu o afeto em qualquer mês, mas tive de ser parida em mês quente, de cores quentes, de cheiro quente. Época em que o povo  festeja suado, se abraçando, esbanjando seus afetos em praça pública, fazendo do calor da cidade, a substância química que os une.

Anos depois, num dia que não lembro qual, surge a Amarelo Dendê, nome que foi dado a essa exposição por um motivo que veio a ser revelado durante o processo. A Amarelo, que era meu diário de ilustrações variadas, uma forma que eu achei para me incentivar a produzir, me rodeou de afetos de tipos vários e que eu só entendi depois. A Amarelo surgiu num consultório, durante a terapia. A arte nos liberta tanto que nasce em lugares diversos. Foi nessa sala, sentada em um sofá, conversando com uma mulher do signo de virgem, que entendi que a arte me amparou ao nascer e me ajudou a crescer. Me deu colo nas decepções e glitter para fazer brilhar as alegrias e por ter sido parida com a arte, escrevi cadernos durante a terapia, onde a arte foi meu bote salva vidas e meus balões de oxigênio. Parte do que produzi, foi me organizando na minha busca inconsciente (naquele momento) do que era o afeto, onde ele estava e por onde passava. 

E então, surgiram as Carregadeiras. Não lembro ao certo o motivo de eu ter começado a fazê-las, mas ao traçar cada linha em vetor daquelas mulheres com suas crias, lembro de estar experimentando pela primeira vez, o contato com a ilustração sobre corpos pretos e a forma como aquilo me tocou, é forte até hoje. Eu me senti aprendendo um idioma novo, mas o curioso é que esse novo idioma me conectava com minha ancestralidade de tal modo que eu passei a observar as nossas relações de afeto, porque eu senti que o afeto era o que irrigava toda a produção que eu fazia e conectava as mais distantes linhas de produção.

Quando comecei a produzir aquarelas, logo fui levada a ilustrar os orixás e o traço foi evoluindo com a conexão com eles. Fui aprendendo que Orixá é energia pura, ancestral, que por não se limitar a dualidade compreende a complexidade humana e nos apresenta o amor  acolhendo as imperfeições. Força motriz e geradora que guarda o Orí, vê, ouve e sente antes e depois e nos enche de afeto com seu resguardo. Orixá é uma energia tão forte que passeia pelo tempo e nos ensina sobre acolhimento em outras formas. Orixá está nas plantas que comecei a aquarelar, e como diz um ditado Yoruba: Cosi ewé, cosi orisà - Sem folha não há orixá. Folha é cura, é alimento, é proteção, é limpeza. Folhas essas que curam tantas feridas das lutas da vida, que protegem as pessoas que se colocam como orixá de frente para defender os ideais. A luta pelo correto é louvação à cabeça e reverência a quem veio antes e referência pra quem virá depois. Essas lutas nos conectam com pessoas de dentro e fora da nossa bolha e nos afe(c)tam e lá vou eu voltando pras carregadeiras lá do início, que sendo e sentindo energia de orixá, usaram das folhas pra rezar, curar, comer, limpar e proteger, suas crias, que agarradas a seu corpo entenderam sem falar o poder do afeto, pelo toque, pelo som das batidas do coração, do suor, do cheiro. 

Assim nasce a exposição Amarelo Dendê. Ela é um passeio pelos processos que me conduziram até aqui, que enriqueceram minha trajetória e que, de uma forma ou de outra colocou a mim mesma como centro do afeto, ou pelo menos, do afeto que eu buscava e tanto pesquisava. Amarelo Dendê é pra mim a prova que o afeto surge de quem o procura e que o centro é a troca, porque é na troca que ele se dissemina.

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Bilhete para quem mora dentro de mim nº 1

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Oi você que está aí dentro da concha. Estou escrevendo pra você porque percebi que não temos nos falado. Eu vivo te citando, mas na verdade a gente não conversa. Eu tô aqui te chamando pra esse papo porque precisamos nos reconciliar. Talvez esse lugar que você está seja muito difícil de acessar, mas precisamos nos ver, nos acalentar. Chega de ficar aí, no escuro, com medo de olhar pra fora enquanto eu fico com medo de olhar pra dentro. Como pode eu ter tanto medo de você, se você sou eu?

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Escrita sobre a ilustração dos baobás -"Os que foram nutriram a terra"

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Eu sou fruto. Eu sou semente. Eu sou potente. Deságuo e me vejo águas, mas na verdade, quando olho pra trás e ao redor, me vejo fruto. Fruto pequeno que cabe na palma da mão, quando eu me comparo a árvore de onde eu vim. Mas, sou imensa quando entendo que se sou fruto de árvore frondosa, se sou mudinha dela: eu sou imensa.

Do bosque onde fui semeada, as árvores me dão nutrientes para que eu tivesse raízes grandes o bastante para me alimentar sozinha e ajudar na alimentação das novas mudas e frutas. Olhei pra trás para agradecer às minhas árvores e muitas delas já não estavam lá. Por me ver tão agarrada à elas percebi muito depois que para me nutrir, elas me deram parte de seus nutrientes, seu viço, a cor de suas folhas. Então fizeram processo reverso e adentraram de novo a semente. E sempre que olho para trás me sinto só, pois as árvores vão diminuindo.

É aí que o vento sopra me forçando a balançar em outras direções e entendo que toda árvore que olha pra trás começa a se sentir só e que o segredo está em se balançar para os lados e para a frente, onde estão as árvores de mesma idade e as mudinhas descendentes. Reverenciamos as que nos fizeram, fazendo outras. É tudo cíclico, sincronizado e calculado. O peito aquece, os nós se fortalecem para algum dia enfim se desfazerem.

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Processos

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Acho que somos um amontoado de perdas e achados de ganhos. O que vai nos marcando na vida são as dores e as alegrias e elas parecem ajudar a esculpir, como em madeira, as linhas que temos. No fim do dia e das contas de nada vale tantos títulos e nenhuma memória. As idades se esvaem por entre os dedos junto com as lágrimas derramadas e a gente guarda dentro de si os risos que ouvimos e arrancamos do outro. Guardamos as lembranças do abraço e de cada encontro.

Somos um motor movido a emoção, e como não ser? Somos quase que majoritariamente água e água é imensidão é força que mesmo contida se movimenta e efetua mudança. Água é emoção. Água leva, água traz e até a raiva que possuo é contada em gotas de água que enchem o balde que chuto depois.

Eu sou o desencontro e a falta de sentido que escrevi.

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Gotas de raiva

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Eu sou quem está dentro de mim e eu recuso encarar

Eu sou o amontoado de perdas e ganhos que esculpem em minha cara linhas e curvas que imagetizam o que eu sou e mesmo assim, olho no espelho e não me reconheço

Eu sou água turva e lamacenta quando me confronto e desconheço, mas sou cristalina quando pingo gota a gota nos baldes de emoções que encho pra chutar depois. Eu sou fluida, sou água contida ou solta, eu sou água. Água essa que escorreu por meus dedos e gerou esse amontoado de palavras babadas e vomitadas num grito de ESSA SOU EU.

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Índice de Obras:

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1. Viril 

2. Banho de folhas 

3. Ferramentas de Omulu 

4. Ferramentas de Obá 

5. Ferramentas de Oxumarê 

6. Iroko Ferramenta 

7. Ferramentas de Oxossi 

8. Ferramentas de Ewá 

9. Oxalá 

10. Iemanjá 

11. Nanã 

12. Baiana

13. Omulu 

14. Os que foram nutriram a terra 

15. Galo lazzaro 

16. Oya Thais 

17. Exu Afrofuturista

18. Tá olhando o que 

19. Existência marginal 

20. Homem 

21. Sem título 

22. Protegida 

23. Referência 

24. Herança de afeto 

25. Batimentos 

26, 27, 28, 29 - série Carregadeiras 

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